sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Aprenda com o passado, estúpido

O texo a seguir foi publicado pelo jornal Valor Econômico, na quinta-feira 29 de novembro:

por Maria Inês Nassif*

No momento em que uma sociedade está passando por uma transformação política, é muito difícil entender as razões e o conjunto de forças que empurram os atores para posições extremas. Mas não é tão complicado definir as responsabilidades por enormes mudanças de rumo dos atores institucionais, como governos e partidos, e, neles, de pessoas com grande capacidade de liderança interna ou peso eleitoral capaz de submeter interesses de seu partido, ou de um governo. Nesses momentos, o protagonismo das crises e das mudanças torna-se público, até porque tem uma função de propaganda, de convencimento dos seus pares (num partido) ou de um setor social mais amplo - seu papel político é aparecer nas páginas dos jornais, moldar opiniões, confrontar adversários.

A introdução é um pouco longa para justificar uma ignorância - onde o PSDB quer chegar? - e apontar um protagonismo - onde o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quer que o PSDB chegue? Por enquanto, a conclusão que se chega, juntando as duas pontas, é surpreendente: o PSDB é um partido que já esteve no poder e tem os candidatos com maiores chances de suceder o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010. Introjetou, no entanto, um perfil de partido parlamentar que, sem chances de chegar ao poder pelo voto, radicaliza o discurso e aposta na desestabilização política, como se precisasse de forças "de fora" da institucionalidade para chegar à Presidência. FHC tem grande contribuição na formatação desse perfil partidário que se, em 2006, já reduziu as suas chances de vitória, em 2010 pode comprometer as chances, agora grandes, do partido voltar ao poder.

Nas crises de 1954, 1955, 1961 e 1964, a UDN, como um partido, foi empurrado, especialmente pelo jornalista Carlos Lacerda, para a estratégia de desestabilização de regimes instituídos pelo voto. A UDN era um partido que não conseguia superar o favoritismo da aliança PSD-PTB; Carlos Lacerda era o candidato que, fortemente apoiado numa classe média conservadora, tinha ambições presidenciais, mas não conseguia arregimentar mais do que uma classe média conservadora (além de uma classe alta conservadora) com um discurso elitista, anticomunista e passional. A intencionalidade golpista do partido e de seu maior líder (ou o mais barulhento) não era obscura. Em 1954, em contenda para depor Getúlio Vargas (PTB), o ex-ditador que havia voltado ao poder pelo voto, o embate era pessoal.

O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jorge Ferreira, no artigo "Crises da República: 1954. 1955 e 1961" (in "O Brasil republicano: o tempo e a experiência democrática", org. dele e de Lucilia de Almeida Neves Delgado), cita frase do udenista Herbert Levy que resume o que foi a campanha de desqualificação pessoal de Vargas: "O Sr. Getúlio Vargas passou a representar para os brasileiros o que pode haver de pior em matéria de caudilhismo; o corruptor por excelência, o ambicioso do poder a qualquer preço, o acolitador dos desonestos, dos violentos, dos deformados moralmente". Em 1955, já de antemão derrotada pela aliança PSD-PTB (consubstanciada na candidatura de Juscelino Kubitschek, do PSD, à Presidência, e de João Goulart, do PTB, à vice), a UDN tirou do bornal uma carta grosseiramente falsificada onde um deputado argentino trataria com Goulart da venda de armas para a formação de supostas "brigadas de choque obreiras" no Brasil. Em 1961, quando o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, resistiu à tentativa militar de não dar posse a Jango, depois da renúncia de Jânio Quadros, udenista por acaso, Lacerda, já governador do Rio, estampou na primeira página do seu jornal, "A Tribuna da Imprensa": "Denys, agora é escolher: comunismo ou democracia". Denys era Odílio Denys, o ministro da Guerra, e Lacerda pedia a consumação do golpe.

Tudo isso é passado. Não se quer aqui atribuir intenções golpistas ao PSDB. Apenas mostrar que, de forma incongruente à sua condição de partido com chances de chegar ao poder pelo voto, ele tem assumido cada vez mais o discurso de quem pede ajuda "de fora". FHC é o porta-estandarte desse discurso. Incluiu na trouxa de tudo o que já falou de politicamente incorreto contra um presidente legitimamente eleito algumas pérolas a mais, no 3º Congresso do PSDB. A mais grosseira foi de novo "acusar" Lula de ter menos anos de escola que os ilustrados tucanos, ele, FHC, principalmente. A mais grave, no entanto, é a insistente tentativa de associar Lula ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A "denúncia" da articulação de um terceiro mandato para Lula é insuflada pelos tucanos mais radicais, porque essa "intenção" transformaria o petista em Chávez, naquele que não quer sair do poder e o manipulará em favor de sua manutenção na Presidência por tempo indeterminado. FHC seria aquele que denuncia a intenção. Disse ele: "Hitler foi eleito, Mussolini foi eleito, nas ditaduras, Stálin foi eleito. Não é suficiente ter eleições para ter democracia" (...) "Eu não estou acusando. Estou dizendo que existe o risco [do terceiro mandato]. E este risco está no ar, e mais do que no ar, está em ações que começam a se organizar" (...) "Espero que o presidente Lula, com mais clareza do que disse até agora, com menos leguleios para justificar o companheiro da Venezuela, diga: 'sou contra'."

Pela lógica, e partindo do princípio de que o PSDB não tem razões para assumir a estratégia da desestabilização para conseguir chegar ao poder - pois ela pode desestruturar candidaturas suas com chances reais de vitória - FHC e os tucanos mais radicais estão tirando do baú um modelo que não serve e não serviu ao país, e não convém ao partido. Supõe-se, então, que em algum momento o PSDB vai se rearticular com um outro perfil - pode até permanecer à direita, mas resolverá a confusão em que se meteu, de achar que ser oposição é desestabilizar um poder constituído, que vai naturalmente mudar de mãos pelo voto se a democracia for mantida. Mas existe o risco de isolar-se abraçado a uma classe média mais conservadora, como Lacerda e a UDN no passado, e, indispondo-se com o eleitor, afastar a possibilidade de conquistar o poder pelo voto - o que provocaria um acirramento dessa posição. Lacerda, reconheçamos, foi melhor nisso. Ainda bem.

*Maria Inês Nassif é editora de Opinião.

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