segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Judaísmo, anti-semitismo, sionismo

Por Mateus Soares Azevedo*,
extraído da Folha de S. Paulo

"Insensatos, prestai atenção: recebei minhas instruções com maior gosto do que se recebêsseis dinheiro, pois a Sabedoria vale mais do que todas as riquezas. Comigo estarão a glória, a opulência e a justiça. Feliz o homem que ouve a Sabedoria."
Extraídas dos Provérbios, de autoria de Salomão, são as palavras da "Sabedoria" personificada. Elas assinalam o lugar privilegiado do conhecimento no judaísmo, tradição monoteísta que tem seu eixo num livro sagrado. A Torá contém os Dez Mandamentos, principal legislação do Ocidente dos últimos 3.000 anos. Até hoje não colocada em prática ("não usarás o Nome do Senhor em vão, não matarás, não roubarás..."), é tão central que ultrapassou suas fronteiras originais, sendo incorporada por cristianismo e islã. Distintamente dessas religiões missionárias, que buscam prosélitos entre todos os povos, o judaísmo não busca conversos e só raramente os aceita.
O judaísmo legou também os Salmos de Davi, venerados pelos cristãos, e os livros sapienciais de Salomão. Davi fez de Jerusalém sua capital, há 3.000 anos, e Salomão construiu o Templo. Destruído em 600 a.C. e reconstruído, foi arrasado em 66 d.C. pelos romanos. O Muro das Lamentações é o que restou dele.
A derrota para os romanos marca a Diáspora -a difusão dos judeus pelo mundo. Curiosamente, a despeito das tensões, suas comunidades somente prosperaram em terras do islã ou do cristianismo. Vem da Espanha muçulmana um dos ápices de sua cultura, com espetacular florescimento da mística e da filosofia, como testemunhado pelo Zohar -Livro do Esplendor-, principal exposição do esoterismo judaico, e pelas obras de Maimônides.

Há ainda o messianismo. Em oposição ao cristianismo e ao islã, para os quais o Messias já veio, o judaísmo sustenta que ele ainda está por vir, para implantar paz e justiça universais. Imagina-se então o fim da Diáspora.

Não se deve confundir essa concepção com o moderno sionismo. Sua ideologia nacionalista e expansionista é uma secularização do ideal messiânico. O sionismo não é parte constitutiva da religião; ainda hoje rabinos se lhe opõem tenazmente, como Moshe Hirsch, de Jerusalém, que prega a devolução integral das terras tomadas na Palestina.

De fato, entre 1947 e 1948, 1 milhão de palestinos foram expulsos de suas terras; cerca de 1 milhão de colonos originários da Polônia, Alemanha, Rússia e outros países as ocuparam. Seu argumento é que foram expulsos por invasores estrangeiros sem vínculo real com o lugar. "Minha família foi responsável pela guarda do túmulo de Davi por 800 anos", disse-me um palestino. "Que direito têm esses recém-chegados de nos expulsar e ocupar nossa terra ancestral?" Para um observador externo não envolvido nas paixões em jogo, o argumento é irrepreensível.
Não se deve confundir anti-sionismo— oposição política a um nacionalismo expansionista — com anti-semitismo

Tenha-se em conta ainda a humilhação sistemática da população nativa, a detenção em massa de civis, o espancamento de inocentes, deportações, destruição de casas e campos de cultivo, fechamento arbitrário de escolas e instituições, ocupação militar de cidades e vilarejos. Isso sem falar dos assassinatos "seletivos", do terrorismo de Estado -e da instalação de cercas em torno daquilo que A. Gattaz, em "A Guerra da Palestina", chama de o maior "campo de detenção" do mundo, a faixa de Gaza, onde "vivem" mais de 1 milhão de palestinos.

Numa época em que tanto se fala de direitos humanos, é inacreditável que o mundo assista inerte ao seu maciço e cotidiano pisoteamento. Não surpreende que mesmo profissionais universitários e mulheres tenham começado a praticar ataques suicidas, signo de sua desesperadora situação.

Não se deve, assim, confundir anti-sionismo -oposição política a um nacionalismo expansionista- com anti-semitismo. Quanto a esse termo, ele é aplicado indiscriminadamente a duas realidades distintas. A primeira é de caráter religioso: trata-se da oposição que cristianismo ou islã fazem naturalmente ao judaísmo, como esse último comporta obviamente uma dimensão anticristã e antiislâmica. Não há aqui nenhum elemento racial envolvido. Seja de nosso agrado ou não, é da natureza das coisas que uma religião necessariamente exclua as outras. Essa é, ademais, a atitude tradicional dos Padres da Igreja, dos escolásticos e também dos protestantes clássicos como Lutero e Calvino, e tem como motivação a rejeição ao Cristo por parte do judaísmo oficial.
A outra realidade também classificada de anti-semitismo é o racismo, universalmente condenado, e que não deve ser confundido com o "anti-semitismo" religioso.Antijudaísmo (religioso; compreensível), anti-semitismo (racismo; inaceitável), anti-sionismo (político; legítimo): três realidades distintas cuja confusão engendra erros colossais de avaliação e de ação.
* Jornalista e ensaísta, é mestre em história das religiões pela USP e autor de "Mística Islâmica" (Vozes, 2002)

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